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Grande Brasil: veredas

janeiro 12th, 2011

Rosiska Darcy de Oliveira*

“O que a vida quer da gente é coragem“. Guimarães Rosa, que sabia que viver é muito perigoso, escreveu que a vida aperta e afrouxa, esquenta e esfria. A presidenta do Brasil escolheu citar essa passagem como uma espécie de resumo da sua trajetória. Das mãos dos torturadores ao Palácio da Alvorada a presidenta sabe bem do que fala.

Que bálsamo encontrar Rosa em um discurso de posse! Ele veio no fim, depois da travessia do grande sertão que é o programa de governo, os conflitos não ditos e os enfáticos compromissos, confirmando o renome de competência técnica.

Pequenas frases terão passado despercebidas, relegadas à retórica impertinente. Não são. Pertencem a uma outra esfera, imaterial, metapolítica. São elas que me interessam aqui, essas veredas que indicam uma direção inesperada e que deram à fala da presidenta, em alguns momentos, um élan que provem menos das sugestões de uma boa assessoria do que de algum recôndito lugar, talvez da memória, onde foi buscar o que de fato lhe pertence.

“Mulher não é só coragem, é carinho também“. Coragem e carinho sustentando a fala de quem anuncia a intenção de honrar as mulheres. Boa notícia para a gente brasileira que já conheceu tanta covardia e maus tratos.

A dimensão do sonho no discurso da presidenta, conhecida por seu senso prático e resolutivo, tampouco é irrelevante. Sonhar uma democracia moderna, garantidas as liberdades políticas, de expressão e de imprensa, já seria auspicioso. Melhor se vivida na clave da cultura brasileira, a generosidade, a criatividade e a tolerância, apostando na ousadia e invenção, para além da “cautela racional”. A vida é sonho, disse o grande Calderón. Quem não é capaz de sonhar não merece o poder. Quem só é capaz disso, também não.

Reconhecer nos traços da identidade cultural brasileira instrumentos para a construção do futuro pode facilitar e muito sua tarefa. Porque não é só com o mensurável, com os números da economia – essenciais, é certo – que se constrói um país. Não se trata de ingenuidade, mas de considerar outras variáveis. Pertencimento e participação são a liga do bom governo.

Governar é muito perigoso. Governar não é coisa só para o governo. Foi bom ouvir que o destino do Brasil – o nosso, afinal – será o que fizermos todos e não apenas os funcionários de Brasília ou os crentes de um só partido.

O Brasil no mundo, se de fato se compromete com direitos humanos – “bandeira sagrada de todos os povos” – deixa para trás os tempos de afagos no companheiro Ahmadinejad. Se não espera pelos outros e se perde em picuinhas para dotar-se de uma política efetiva de preservação ambiental, mas o faz porque é compromisso universal, ganha liderança na mais aguda e significativa crise global. Valores, mais que realpolitik, podem ser bons conselheiros.

Dilma despertou esperanças. Esperança não é um sentimento passivo, é parte ativa da realidade que se quer construir, desse acervo imaterial que é tão decisivo na história das nações. Um discurso não faz milagres. As esperanças que despertou estavam latentes.

Fica a perplexidade: como cumprir essa coragem e exercer o carinho pelo povo com o ministério que escolheu ou que lhe impuseram goela abaixo? Entre a limpidez do discurso e a mediocridade da foto oficial, salpicada de carcomidos, cai-se no abismo da dúvida. Sua democracia moderna já vem com cheiro de mofo. ”Daí, de repente, quem mandava em mim já eram os meus avessos”.

A história é bem conhecida. A vitória tem o preço da composição partidária e a conta costuma ser salgada. Há quem veja nisto a fatalidade do jogo da política. Um outro olhar enxerga aí um beco sem saída em que a democracia é assaltada. Literalmente. Postos e nomeações são o butim. “A gente quer passar um rio a nado, e passa, mas vai dar na outra banda em um ponto mais embaixo, do que em primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?”

Para honrar sua palavra de mulher, Dilma vai ter que enfrentar este paradoxo da vitória que ameaça derrotá-la. Coragem não lhe falta. Tomara que não falte a inventividade que prometeu, aplicando-a para escapar desse impasse. “O mais importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”.

Desejo-lhe, neste início de mandato, que vá sempre mudando e não desafine. Que continue lendo e relendo o Grande Sertão e continue a falar em carinho porque ”qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Que Rosa a acompanhe.

*Escritora – rosiska.darcy@uol.com.br