Eloá Muniz*
Em tempos de pandemia maratonar tornou-se um verbo bastante conhecido e propagado. As imagens e o mergulho no desconhecido tornaram o isolamento social uma atividade essencial e fóbica. A ansiedade e o medo apoiado pela mídia catastrófica tornou insuportável a brusca mudança de comportamento social via decreto e orientações desconexas. Uma doença desconhecida e cruel tomou conta do planeta: globalização pandêmica.
Uma sociedade acostumada a viver no público viu-se
obrigada a viver no privado. Que privado? Cada pessoa precisou buscar seu cantinho
preferido, tanto na casa como na alma. As informações diversas, dispersas e
desencontradas. É um game?
Aos poucos uma nova rotina se impôs e a sociedade não
estava preparada. Ocupar o tempo. Usar o tempo. Aproveitar o tempo. Tempo para
o sol. Onde? Cadê o tempo? Distanciamento. Isolamento social. Aproximação
virtual. Espaço fértil para consumir cultura. Os produtos culturais, como um
elemento líquido, penetram nos espaços vazios. Surgiu a cultura líquida.
As plataformas de streamings da infoesfera (como Netflix, Amazon Prime Vídeo, HBO,
Globoplay, Fox+, Telecine Play e outras) estavam lá. A Netflix com as estratégias mais eficientes identificou a
oportunidade de imediato. Ganhou o público com seus produtos culturais, séries
e filmes. Ocupou o Top 10 na conexão com o telespectador. Maratonar tornou-se
imperativo. A quarentena obrigou os canais abertos a uma programação de
reprises e, assim, a migração para novos conteúdos foi rápida.
As redes sociais alavancaram o processo de distribuição e
propagação de um novo comportamento: Estou
maratonando a série tal. E você? Eu também. Estou adorando esta série. Ou Eu parei de assistir na primeira temporada.
Não gostei. A linguagem tornou-se leve, gostei
ou não gostei, simples assim.
De repente, as pessoas pararam de se contrapor e passaram
a falar de temas amenos. A grosseria de “quem tem razão grita”, perdeu seu
efeito devastador, e, finalmente, se poderia conversar nas redes sociais face to face. Cresceram as conexões via WhatsApp. Que susto para o establishment.
A cultura invadiu os lares das pessoas conectadas às
plataformas, desterritorializando a cultura como se fora líquida. As
séries espanholas e mexicanas chegaram aos corações da audiência surpreendendo,
inclusive os executivos da Netflix.
Rapidamente a plataforma tornou-se receptora de séries e filmes em língua
espanhola fazendo frente às grandes produções norte-americanas. No bojo desses
acontecimentos vieram as produções canadenses, alemãs, inglesas, e francesas.
O isolamento social trouxe uma grande mudança de
comportamento, os brasileiros passaram a consumir cultura fora do eixo Globo-Hollywood. Descortinou-se uma nova
possibilidade de contar e ouvir histórias: as produções europeias.
Portanto, maratonar, uma atividade muito intensa e que ao
tornar-se ação efetiva nessa quarentena, passou a significar assistir a uma
série sem parar. Ler um livro ou consumir qualquer produto de entretenimento de
forma ininterrupta, frenética e incessante, com muito interesse e empolgação
tornou-se um comportamento ritualizado, preparar os lanches, organizar o espaço
confortável, relaxar e curtir.
Uma ação individual ou coletiva de assistir tornou-se
sinônimo de maratonar. Se a televisão tem como característica a tradição humana
mais antiga que é a de contar e ouvir histórias, nesse período pandêmico ela
apresenta uma audiência não aglomerada, mas muito mais numerosa do que jamais
foi possível conseguir na história da humanidade, atender as demandas
pandêmicas: isolados, mas virtualmente aglomerados.
Os artistas com o poder de estarem em milhares de lugares
ao mesmo tempo conectando-se a pessoas dispersas geograficamente – local e
global –, perfeitos simulacros de deuses, contam histórias simultâneas, falando
em todos os idiomas, numa verdadeira maratona globalizada. As redes sociais
crescem com críticas a favor e contra, revelando que o trinômio
drama-conflito-ação parece ser indissociável, não apenas para o cinema
clássico, como para todas as linguagens. Mundialização das histórias
transmitidas pelas infovias e impulsionadas como culturas líquidas para o
consumo na casa ou nas mãos de cada espectador.
O Brasil é um país tradicionalmente afeto aos relatos
orais, leituras em voz alta, declamações, histórias continuadas nos serões
familiares, local em que nem todos são alfabetizados. A televisão reeditou esse
hábito de ouvir histórias em capítulos, reunidos em família, promovendo
conversas relevantes. A telenovela narra as histórias, tal como folhetins
românticos e heroicos, organiza o cotidiano das pessoas que se acostumaram a
assistir o contar e recontar em tempos divididos, sempre no mesmo horário,
narrações em forma de diálogos, esteticamente bem apresentados. Os cenários,
locações e figurinos apresentam os personagens no contexto de suas histórias
contribuindo com a narração não verbal, e os diálogos, luzes e trilha sonora
contribuem com o contar da história, a narração verbal. Completam-se para
atingirem os sentidos.
A telenovela é uma obra aberta, portanto, a opinião da
audiência é muito relevante, e a história vai se estruturando e se
transformando conforme a anuência do público em relação aos personagens.
Trata-se de uma forma de contar histórias que ganhou o mundo. Mas parece que a
pandemia alterou um pouco essa relação. Os produtos com características de serialidade
diária exigem um espectador disposto a assistir todos os dias a mesma história,
na mesma hora, e dessa maneira, organize seu cotidiano. Uma ritualização
durante um período, estar sempre à frente da televisão naquele tempo e ao mesmo
tempo.
Nessa linha de produtos em capítulos existem três tipos
diferentes: a telenovela organizada em capítulos, em que o seguinte é
continuação do anterior, sem que haja previsão do desenvolvimento e desenlace
da história; a série ou seriado é uma sequência de histórias completas –
apresentação do tema, problematização e desenvolvimento e finalização – com os
mesmos cenários e personagens principais. Cada episódio é independente, não tem
compromisso com a continuidade narrativa, apenas manter as características dos
personagens fixos; e a minissérie que possui uma história fechada, em capítulos
definidos previamente – apresentação dos personagens na história,
desenvolvimento e finalização – junto à produção. Constitui-se numa obra
fechada.
A televisão de canais abertos e fechados assustou-se,
viram sua programação patinar na audiência e anunciantes migrando para outras
formas de apresentação de conteúdos. Os tradicionais serviços de TV por
assinatura perderam assinantes, enquanto as plataformas de streaming
crescem nitidamente. A pandemia acelerou esse processo e a Netflix, a principal plataforma de streaming, ultrapassou as
assinaturas de TV a cabo nos Estados Unidos e o Brasil seguiu no mesmo ritmo.
A pandemia impulsionou esse aumento, mas o investimento
em conteúdo original foi ainda mais significativo. Mais conteúdo próprio
significa independência em relação às emissoras e até economiza nos gastos com
direitos de transmissão de conteúdos alheios.
No Brasil os dados da Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel) mostram que o mercado de TV paga perdeu mais de 10%
de sua base. Isso significa que a cada 100 televisores, pelos menos 32 estavam
sintonizados na Globo e outros 15 conectados aos serviços de streaming. Os outros televisores
dividiram-se entre todos os canais abertos.
As séries espanholas lideram as plataformas de streaming
e ganham Top 10, globalizando-se. Obtiveram os maiores índices na recepção das
histórias contadas e trouxeram ao mundo uma nova possibilidade, resgatar a
teledramaturgia com estrutura de direção artística e roteiros bem escritos.
Conteúdos criativos com forte apelo emocional, mas com componentes históricos
reais. O feminismo, a sororidade, a sexualidade, as lutas cívicas e o amor
romântico desfilaram em épicos folhetins arrebatando os assinantes como há
muito não acontecia com as histórias contadas na contemporaneidade. A estética
ocupou-se em modelar uma nova forma de contar histórias usando o mesmo modelo shakespeariano.
Os canais de TV aberta ou a cabo terão que rever sua
programação. Telenovelas longas demais não serão acompanhadas, tem-se pressa de
viver. Temas duros e muito reais não serão arrebatadores, tem-se pressa em
sonhar. A falta de otimismo e o fatalismo não terão espaço, tem-se pressa de um
novo normal. Cada experiência trouxe um novo alento e uma nova forma de
resolubilidade, centrado no eu e, depois, no outro mais próximo. Não há tempo
de espera.
A pandemia trouxe um grande aprendizado: o
desapego. Para viver é preciso tudo isso? O consumerismo desacelerou. A
pandemia ensinando prioridades. Mostrar que o planeta é um só, sem muralhas e
sem separações entre as pessoas, as classes sociais desaguaram no vazio. É
necessário compreender o novo normal. E
qual seria? Quanto mais se vive mais se perde, mas não se pode viver com
medo. Relaxar um pouco é preciso. Tentar apreciar o que se tem é viver o
presente. Gosto deste presente? Todo
o tempo é de ser. Não renuncie a nada.
* Psicanalista Clínica, Publicitária, Professora,
Escritora e Ensaísta. www.eloamuniz.com.br. eloamuniz@terra.com.br.