Marisa Faermann Eizirik *
“E existe a trajetória… em matéria de viver nunca se pode chegar.” (Clarice Lispector)
Falar sobre o que é a felicidade é refletir sobre o que é importante na vida, com a clareza de que não será o mesmo para todas as pessoas, que as prioridades e os caminhos, os gostos e as necessidades são diferentes.
Há questões que ocupam a empreitada humana em todas as épocas e, tal como o amor e a amizade, a felicidade é uma delas. É um tema recorrente e fundamental em toda a história do pensamento. As duas principais correntes filosóficas helenísticas, o epicurismo e o estoicismo, se ocuparam dela. Epicuro, em sua famosa Carta sobre a Felicidade (sec. 4 a.C.), define-a como a ausência de dor física e de turbulência do espírito, pregando uma distensão. Em contraponto, Sêneca (sec. 1 d.C), em Da Vida Feliz, acredita que a felicidade implica tensão, busca da virtude, da sabedoria, algo que precisa ser trabalhado, investido, como um ideal que não é da ordem da posse, mas da procura. Localizada no plano da ética, a questão da felicidade – como aquilo que o homem é capaz de criar por si mesmo – ocupou os filósofos em todos os tempos, de Platão, Aristóteles, Spinoza, Kant e Nietzsche, para citar alguns, aos nossos dias, em que os filósofos da liberdade (como Sartre) ou da diferença (como Derrida) concordam em que não há a possibilidade de uma ideia geral de felicidade, como um fim a ser atingido, mas escolha existenciais, movidas por desejos e expectativas extremamente diversificadas, individual e socioculturalmente.
Falar sobre o que é a felicidade é refletir sobre o que é importante na vida, com a clareza de que não será o mesmo para todas as pessoas, que as prioridades e os caminhos, os gostos e as necessidades, são diferentes, sem a expectativa de esgotar as questões e chegar a uma ideia definitiva que satisfaça todas as exigências. Assim, não podemos falar em felicidade abstrata. Como a vida, a felicidade é “minha”, pois afeta o núcleo íntimo da vida. Ela é particular e intransferível. Está em conexão com o que eu sou e desejo, e, mais ainda, com o que desejo ser, necessito ser.
A felicidade, segundo Gianetti, “não é algo que se compra, embrulha e leva para casa”. Não é algo ligado ao ter, mas ao fazer. “Ela não é um humor ou um estado de ânimo, por mais exaltados e duradouros que sejam, mas o resultado de uma vida bem conduzida, ou seja, das escolhas e valores que definem nosso percurso. Jamais será um estado final, que se possa adquirir e tomar posse de uma vez por todas”. Como uma atividade, a felicidade se cultiva e constrói e, por alguns momentos, se conquista e desfruta. É fonte de alegria, mas está sempre a exigir de nós empenho, amor, e contínuo recomeço.
Acentuando a característica humana de ser e já não ser, não ser e talvez não poder vir a ser, Marias define a felicidade como “o impossível necessário”, aquilo que pode ser uma realidade desejada e nunca alcançada, ou concluída: é o esforço para atingir porções, ilhas ou momentos de felicidade, o que já é uma forma de vivê-la. Felicidade é apaixonar-se pela possibilidade de viver. Enquanto algo ideal, feito nirvana ou paraíso a ser encontrado e possuído, sabemos que é uma miragem. Porém enquanto busca, é sempre instigante o movimento de valorização e aceitação de si e, ao mesmo tempo, de batalha para não permanecer o mesmo. Viver a felicidade enquanto travessia, desfrutando dos prazeres possíveis, das conquistas concretas, em nossos diferentes momentos de vida.
Existem as contingências às realidades, e a elas não é necessário se submeter de forma passiva e resignada. É preciso “escolher a si mesmo”, considerando as possibilidades pessoais e os constrangimentos objetivos do mundo. Mas o que significa “escolher a si mesmo”? É no teatro do cotidiano, na experiência do dia a dia, na escolha de si que podemos encontrar beleza, harmonia, inventividade, oposição à moral corrente, insubmissão, coragem, ética. A escolha de si como autor do próprio futuro pode consistir na construção de uma vida simples. A simplicidade do projeto não desmerece ou nega a autenticidade de quem a fez. Ao contrário, mostra que a potência humana se manifesta na e pela decência com que nos mantemos leais a nós mesmos. Viver segundo aquilo em que se crê é uma empreitada transitória, mundana e humana, com a crença de que todos temos o direito de pensar e agir sobre nossas vidas. Tudo que podemos fazer – e persistimos fazendo – é confiar em nossa capacidade natural de preferir viver a morrer. É ter um compromisso com a vida, dar um salto existencial, fazer escolhas e responsabilizar-nos por elas.
Escolher-se a si mesmo, em termos de uma ética e de uma estética de si, significa que não se escolhe apenas seu amado, mas toma-se a si mesmo como amante. O salto significa destinar a si mesmo e não determinar (ou se deixar determinar) a si mesmo. Ser determinado é ser “empurrado” pelo passado e pelas circunstâncias; autodesligar-se é ser “puxado” pelo que se escolhe como compromisso para toda a vida. Entretanto, autodesligar-se, dar o salto, não ocorre apenas através de uma escolha racional do sujeito. A consciência da escolha feita está presente ao se fazer a opção. Mas é a continuidade da vida – a sequência dos compromissos assumidos – que qualificará a escolha como decisão. A aposta se dá na vida como potência, como devir, como expansão das dores e das alegrias.
Isso nos remete a Foucault que, desde uma outra perspectiva, também encara a ética como a relação consigo mesmo. Não se encontra, todavia, em sua obra ênfase na palavra felicidade, e sim uma acentuação nas expressões estilo, ética e estética da existência. Para Foucault, estilo de existência significava um trabalho de si sobre si, como um artista de si mesmo: um melhoramento de si, na dimensão da existência humana, concebida como uma prática, um agir onde o homem é o autor que delibera, deseja, age e justifica suas ações. Tornar-se si mesmo, criar um modo de viver segundo valores que se escolha e se responsabilize, renunciando a outros e respeitando as escolhas existenciais dos outros, por meio de ações que expandam nossa imaginação e criatividade. Esse trabalho sobre si próprio não é uma atividade difusa, mas todo um conjunto de ocupações; implica sempre um trabalho que demanda tempo e um tempo que não se dá no vazio; ele é povoado por exercícios, tarefas práticas, atividades diversas, permanentes, ao longo de toda a vida. Trabalho que não se dá apenas individualmente, mas se sustenta na relação com os outros.
A vida, sempre em processo, não para a fim de que mudanças possam ser feitas. Não há um tempo para a reflexão e um tempo para a transformação. O mistério da vida é que tudo está acontecendo, o medo e o prazer, o sofrimento e a alegria, basta não estar fechado ao real. As transformações acontecem ao ar livre, sempre agitado, do conflito, do afrontamento, da luta, da resistência. O indivíduo contemporâneo é em primeiro lugar um passageiro metropolitano: em permanente movimento, cada vez mais longe, cada vez mais rápido. Com o movimento, sob o impacto da velocidade, perde-se a espessura. Com a generalização, há falha no próprio princípio da representação – as imagens passam a constituir a realidade, banalizam-se. O olhar enfrenta um espaço aberto, fragmentado; fratura e rompe a superfície lisa, foge à totalização, dá lugar ao lusco-fusco das zonas claras e escuras. O impulso inquiridor do olho nasce justamente da descontinuidade, desse inacabamento do mundo.
Conceber o pensamento sob o signo da viagem, aconselhava Nietzsche, e não sob o signo da parada, seria fugir do imobilismo. Pensar é mudar. Trocar de pele, olhar diferentemente para o que se conhece, exercitar um olhar viajante, um olhar estrangeiro, como sinaliza Cardoso. Há os acomodados, caseiros e sedentários. Transitam num espaço ordenado, compacto e pouco acidentado, que tudo acomoda; desdobramento cerrado e contínuo. “Ofuscamento dos cortes do horizonte, neutralização dos relevos”. Há os inquietos – curiosos ou insatisfeitos – aos quais “o ponto cego do horizonte obseda, fustiga e desafia. Desdenham o homogêneo e o contínuo; são sensíveis às diferenças e atentos aos limites. Afrontam obstáculos e vazios, são impelidos para o espaço aberto”. Porém, as direções e os sentidos também podem tornar-se indiferentes quando se dilui o desejo. Viagem supõe distância (proximidade), tempo, espaço, inclusões e exclusões, extensões – potência de estar em algum lugar – um entre/passagem. Supõe também saltos e rupturas, supõe riscos, desassossego, vertigem.
Nem todos querem fugir da ordem, do já programado e conhecido, errar e se dissipar em meio a aventuras, que podem ser dispersas e fragmentadas, e, por isso mesmo, constituir viagens em intensidade, que abrem passagem para olhar mais além, mais profundamente, as brechas e fissuras, os desníveis, as indeterminações, inesgotáveis experiências de sentido e de tempo. Viagens assim sempre tem um preço, que é nossa própria transformação. Um projeto pode ser, portanto, um modo de existência.
*Psicóloga, Professora, Doutora em Educação pela UFRGS, Coordenadora do Comitê de Pesquisa da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul.
Notas bibliográficas
CARDOSO, Sérgio O Olhar viajante (do etnólogo) IN: NOVAES, ª et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988: 347-60.
FOUCAULT, M. An Aesthetics of Existence . N. York: Routledge, 1988;
EIZIRIK, M. F. Michel Foucault, um pensador do presente. Ijuí: Unijuí, 2005.
MARÍAS, J. La Felicidad Humana. Madrid, Alianza Editorial, 1988.