Teniza Spinelli*
A frequente comparação do museu com uma máquina do tempo – que desloca e transporta o indivíduo para outros mundos – leva-nos a crer que o espaço expositivo no museu, de fato, nos conduz a um tempo diferenciado e inusitado. Esse tempo concebido e problematizado – foco do olhar – pode ser o passado, o presente ou mesmo a projeção de um tempo ou lugar do futuro. Mas seguramente nunca será o tempo real vivido pelo visitante fora do espaço artificial, idealizado e institucionalizado. Porque o tempo no espaço da exposição museológica será sempre um simulacro do tempo real.
Para esclarecer essa assertiva fomos buscar inspiração em uma antiga lenda oriental. Trata-se da história de Urachima Taro, famoso pescador japonês e sua viagem a um mundo desconhecido.
Urachima, ao salvar uma estranha tartaruga maltratada por garotos, em uma praia de sua aldeia, liberta, sem saber, uma princesa encantada, filha do rei do mar. Como prêmio, a princesa o convida a conhecer o seu palácio, no fundo das águas. Impressionado por aquele mundo, Urachima se envolve e, acaba permanecendo ali, casado com a princesa.
A lenda, pela riqueza dos fatos abordados, nos permite fazer inúmeras reflexões: a tartaruga, por ter vida longa, constitui-se num símbolo milenar da passagem do tempo em seu lento, constante e irreversível percurso. Ela é ainda, neste caso, um vetor de comunicação. Em um museu, a exposição é o espaço do estranhamento, do hermético a decifrar. Trata-se de um local onde o visitante se percebe através dos objetos e, ao reconhecê-los, se conhece e se transforma. A mensagem contida nos objetos (meios), proposta pelo emissor (profissional do museu) no contexto museológico está destinada ao visitante-receptor denominado público de museu.
Na história em questão, o pescador é este indivíduo-visitante. Ao mesmo tempo em que ele desencanta/desvela o objeto olhado – na lenda a tartaruga/princesa – ele é também por ela encantado, gerando-se uma transformação. Urachima acaba fascinado pelo desconhecido: o mundo submerso da memória.
Que tempo é este que Urachima encontra no fundo do mar? Não é o tempo que ele viveu na aldeia, nem o tempo futuro que desconhece. Trata-se de um tempo presente, porém um tempo paralelo coexistente ao seu.
Conforme a lenda, a busca interior do personagem o consome. Embora vivendo com a princesa e rodeado de fabulosos tesouros, Urachima não consegue ser feliz. Como um exilado, ele teme perder a identidade e, por isso, deseja reencontrar aquele passado deixado para trás. Decidido a partir, recebe da princesa uma caixa fechada. Ela recomenda-lhe que não a abra, caso contrário jamais poderá regressar e vê-la novamente. A caixa nas mãos de Urachima representa uma incógnita. Assim como a tartaruga, este objeto é um vetor simbólico da comunicação com o tempo. A caixa contém o segredo do conhecimento ali acumulado e encerrado.
Cumprida a saga do retorno, no momento em que Urachima volta à tona, aflora à superfície das águas e caminha pela orla da praia, ele não reconhece mais a antiga aldeia. Descobre que seus parentes e amigos haviam morrido há séculos. Percebe que o tempo não tinha a mesma equivalência nos dois mundos. A lenda nos leva a crer que não há caminho de volta no tempo. Quando se move uma porta, não há retorno para o mesmo lugar, mas sim um abrir-se para o novo – um tempo reinaugurado. A identidade se constrói no caminhar e não no tentar reaver o que ficou para trás.
Como derradeira chance, em busca do auto-conhecimento, Urachima tenta reverter o tempo e projeta o futuro no fundo do mar. Mas o fundo do mar agora era passado. Desesperado, sem entender o enigma, Urachima esquece a recomendação da princesa e abre a caixa. Tal como a caixa de Pandora, ela contém um segredo, uma revelação radical para o visitante. Seu interior desvenda para ele a materialidade do tempo e opera nele uma transformação física. Urachima começa a envelhecer com rapidez e transforma-se num ancião. Amadurecido pelos anos e pelo conhecimento acumulado, sozinho, o pescador acaba morrendo na praia, no mesmo lugar da partida, agora também chegada. Cumpre-se assim a roda da vida.
Transpondo a lenda para o espaço museológico, podemos deduzir que a incógnita do tempo está contida nos objetos dos museus – signos – em sua relação com as pessoas, pois se tornam vetores de comunicação. O tempo é finito para os seres humanos, porém os objetos permanecem como testemunhos materiais, herdeiros da passagem do homem sobre a terra. Eles são verdadeiras máquinas do tempo a conduzirem os visitantes nos museus. Assim, a memória é uma condição do homem que o diferencia dos animais, pois somente o homem é capaz de capturar o tempo, de entender e traçar a sua própria trajetória e ter consciência de sua finitude.
Concluindo: entrar num museu – não importa qual tipologia – não é necessariamente entrar no passado. É, sobretudo, estabelecer nexos e relações sem fazer juízo de valor entre o velho e o novo, o bom e o mau, o feio e o belo. É exercitar a capacidade humana de reflexão. A memória não está, portanto, nos objetos dos museus, mas na capacidade humana de projetar e perceber nos objetos/bens culturais os condutores de processos mentais e de reflexões.
*Jornalista e museóploga