por Ana Veloso*
“Tolerar a existência do outro, e permitir que ele seja diferente ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas da qual estivessem excluídas a tolerância e a intolerância”. (José Saramago)
A profusão de comunidades que atacam os nordestinos no Orkut faz pensar. Assim como as comunidades dos “adeptos do estupro corretivo”, causa repulsa, revolta e estranhamento. A oferta das possibilidades tecnológicas de tais redes sociais não pode ser classificada de forma simplista como boa ou má. A técnica pela técnica, o mero aparato, tem ideologia?
Não podemos observar os fenômenos comunicacionais e tecnológicos separados dos contextos históricos, políticos, culturais e sociais onde estão inseridos. O ser desumano é a desmedida de todas as coisas. De forma vil, se apropria de tudo e de todos como objetos para consumo. Como se os outros, os humanos, os “descartáveis”, não pudessem ter a liberdade para ser, viver, existir.
Quando denunciamos a conexão entre os/as que se identificam pelo desejo de exterminar os nordestinos ou dos/as que celebram o “estupro corretivo de lésbicas”, e fazem suas manifestações criminosas via internet, observamos a instrumentalização de uma ferramenta para a violação dos direitos humanos. Isso não é nenhuma novidade uma sociedade que lançou a bomba atômica. “Os fins justificam os meios” (Maquiavel).
O primeiro fenômeno foi intensificado, recentemente, depois da catástrofe que dizimou centenas de vidas em Alagoas e Pernambuco. O segundo existe há muito tempo, tendo sido publicizado, inclusive, por representantes da ONU. Uma análise dos discursos dos/as pertencentes a esses “grupos” revela um teor tão intenso de violência que chega a causar descentramento, sobretudo diante do que compartilhamos como sentimento de pertencimento à humanidade. “O inferno são os outros” (Sartre).
“O exercício da liberdade de expressão não pode violar outros direitos humanos”. De qual tipo de “liberdade” estamos tratando? Certamente, não daquela que eleva a alma. Da que desenvolve o ser e o impulsiona à vida, à contemplação da natureza e à arte. Falamos de um sentido de liberdade que os/as participantes desses espaços virtuais ignoram. Sob a égide da opressão/dominação não é possível conceber a essência da liberdade.
As posições, os termos e a forma de pensar e agir dos que estão envolvidos nestes guetos exprimem o facismo presente em nosso cotidiano. Quando tratamos do tema, de modo sério e responsável, muitos/as saem em defesa dos/as que compactuam com esse absurdo. Já ouvi: “são jovens brincando”, “faz parte da liberdade na internet ”, “restringir é censurar”.
Até quando, tais argumentos irão dissimular a verdade? Quem prega o separatismo, a xenofobia, o racismo e os crimes de ódio coloca combustível nas engrenagens que movem a barbárie em todo o mundo. É por isso que a mecanização da vida e o descarte do ser humano são, hoje, divulgados sem o menor pudor para quem estiver “conectado/a”. Assim como a exploração sexual comercial virtual de crianças e adolescentes, são delitos que, no Brasil, estão ao alcance de um mouse.
* Jornalista, professora de jornalismo da UNICAP, colaboradora do Centro das Mulheres do Cabo, doutoranda em Comunicação pela UFPE e empreendedora social Ashoka