Hilda Simões Lopes
A chuva se estilhaça, o limpador de parabrisa vai e vem, a mão de Pedro na alavanca engrena segunda, a navalha de borracha varre as gotas e o gosto acre queima a boca, a garganta, ameaça os miolos. Maria Aparecida endurece o corpo, aperta os dedos e se abraça, as unhas apunhalando as carnes. Caem confetes de água negra e imagens que o limpador leva, iguais a fala de Pedro, “Cida, não dá pra entender, com tudo pra seres feliz”, igual a conversa da tia Natália, “E essa cara, Cida? aceita a vida como ela é, marido bom a gente agrada”. A chuva é mais forte, desaba um rio pelos contornos, a visão é difícil, mas ela só vê, nítida, a própria dilaceração e os avessos e os gestos de Pedro, cheios de serras, lesmas, escorpiões. A mão de Pedro volta a mudar a marcha, a chuva ameaça romper o carro, as unhas de Maria Aparecida batem nos ossos, “Estás doente, não tens motivo pra não seres feliz”. Ela se lembra dos couros dos animais mortos, estaqueados, pregos nas extremidades, e se percebe tão esticada que já começa a se partir. E a voz, “Para mulher de homem rico que não tem amante, separação não tem cabimento”. O carro tropeça, a cabeça de Maria Aparecida sacode e ela pisca demorado, quando abre os olhos está envolvida pela perna da caranguejeira que sai da boca de Pedro, “ Cida, o que mais tu queres?” A caranguejeira se enrola mais, as trovoadas estouram o mundo e Maria Aparecida esfrega as mãos no rosto limpando-se da imundície, relaxando braços e pernas. E se entrega à chuva, morrerá limpa, igual à sua casa, filhos, armários, cozinha, tudo impecável, no lugar, cumprindo as funções com a perfeição das existências que não pensam. Estouram novas trovoadas, relâmpagos rasgam as trevas, ela se enxerga casando, embrulhada em nuvens brancas e pergunta se a alvura não será mais perigosa que o negrume. Volta a se ver noiva e as vozes, “A gente vê, são duas metades que se encontraram”. Metade, o que é uma metade? o outro lado, a base, o tempo de ser suporte, as garras descendo pelos avessos, igual beliscão fininho de menina malvada em tempo de colégio, ninguém via, o mais doloroso. Sente a aspereza do couro do acento na pele dos dedos, o barulho cadenciado da chuva, lembra o conto de Garcia Marquez, a mulher sangrando pelo dedo da aliança, hemorragia incontrolável, morte. A trovoada reconduz a voz, “Deves estar doente, com a vida que tens, separação, idéia de mulher desvairada”. O carro mergulha, a gosma acre enche-lhe a boca, o nariz, os ouvidos, ela entope. Imagens do casamento da filha, do filho saindo de casa, ela escondendo de Pedro ser por causa dele, cumprindo os desígnios, “Mulher tem que acomodar as arestas, deve servir de algodão entre marido e filhos”. Vê a casa sendo construída, feita de mata-borrão, prometendo absorver infelicidade. Fizeram a planta com cuidado, havia pontos com aspiradores gigantes: as lareiras, a piscina, a churrasqueira, onde todos os males seriam tragados. A voz de Pedro: “Estás proibida de voltar a este assunto cretino”. Estás, estás, sim, estás acostumada à tortura mental, dias e dias em silêncios guardados por tanques de guerra camuflados, era culpada, e não sabia de quê, mas estava proibida de ser infeliz, e os tanques trepidavam, e ela afundava na taquicardia, tremedeira, pressão caindo até o desmaio. Estoura o raio, abre os olhos, é mulher ruim, é culpada de tudo e não tinha feito nada, é infeliz e não podia ser. Uma voz a deixa cega, “A mulher é a responsável pela felicidade de uma família”. Caem pedras, a capota e o parabrisa ameaçam se partir, o temporal urra. Os negócios de Pedro, os dinheiros de Pedro, os desamigos de Pedro, a culpada é ela, os tanques de guerra encostam, casamento era avalizar a felicidade de um outro, era ser taipa de açude, o aguaceiro é tanto que o carro quase pára. A voz da mãe, “Como podes estar assim? casamento é isso mesmo”. Sacode o rosto, ergue os cabelos, respira fundo, pensa que o temporal é violento, então haverá dia de sol, entende avessos, há muito observa as gentes de veludo com avessos de punhais. Ergue-se a voz da amiga, ”Quando a gente tem marido como o teu e não agüenta mais, pede jóia, viagem, nova decoração para a casa”. O carro avança, já é madrugada e ainda chove pingos recheados. Outra amiga: “Cida, arruma um amante, homem casado e importante, o caso será secretíssimo, a gente fica mais bonita e se sente culpada, aí consegue levar o casamento adiante.” A perna da caranguejeira se ampliou e agora enrola-se em sua cintura, ouve gritos de que é culpada de tudo, pergunta o que fez de errado e os tanques rodopiam sobre seu corpo, algum lugar sangra, a navalha vai e vem no parabrisa, o carro estaciona e ela vê os pingos negros, é prisioneira da morte. Destrava a porta, quase se joga ao chão, Pedro já desceu e avança pelo avarandado. Ela permanece de pé, estática, inundando-se de chuva. “Cida, estás louca, sai da chuva”, ele fala gesticulando, chaves na mão. Ela olha as águas, a sangüeira a seus pés, ouve o fio da própria fala, “Pedro, eu não vou entrar”. Ele grita, “Estás louca, anda logo, olha os raios”. Arrebenta-se nova trovoada e faíscam raios, as pedras do caminho tremem. “Cida, não me ouves, Cida!” Maria Aparecida ensaia os primeiros passos, descobre-se firme, ergue a cabeça, esboça um sorriso. Enxerga festival de luzes em seu caminho, o rugido das trovoadas se transmuta na marcha triunfal de Aída, águas dançam à sua frente. Alguém grita, “Estás ensopada, corre, vem”. Ela abre a bolsa, pega a chave do próprio carro e se dirige a ele. Entra. Engrena a marcha-a-ré.