por Berenice Sica Lamas
Em uma sociedade em que talvez milhares de mulheres estejam sem espaço para criatividade alem do biológico, com seu imaginário cerceado pelo papel feminino pressuposto da domesticidade, com suas possibilidades de expressão artística interditas, mais do que nunca é necessário pensar, ler, escrever e refletir a respeito.
Merecem lembrança as obras que nunca chegaram ao papel, à tela, à partitura, ao palco, à galeria, ou seja, arte não construída, e não apenas desvelar compositoras, escritoras, pintoras cujas obras chegaram ao domínio publico. Nossa cultura reconhece a competência para criar como qualificativo masculino, dificultando espaços ao trabalho da mulher artista profissional. Não faz parte da representaçao da sociedade aceitar a posição de criação cultural da mulher, em que sua capacidade criativa, sua imaginação criadora prescindem do útero. Uma das implicações em uma sociedade de domínio masculino é a mulher ser cerceada em sua expressão de criaçao artística, como uma maneira de aprisiona-la.
O fato de algemar seu imaginário, não permitindo que expresse sua visão de mundo, que narre suas experiências, é outra forma de anula-la e manter o domínio. Uma mulher artista foge ao olhar patriarcal, que não consegue prende-la nem domina-la. Ela escancara através de sua obra o seu desejo, suas lutas, magoas, e denuncia o regime masculino. Com sua arte ela abre espaços políticos, um novo poder, um questionamento, uma dissonância nos papeis postos.
Passa a haver uma inserção consistente e consciente da mulher na sociedade, pois suas obras tem um significado socio histórico que transmite às pessoas uma recriação do real que pode leva-las à reflexão/açao/mudança. Isso porque há uma ruptura das representações sociais. A condiçao humana da mulher não é somente de reprodução, mas de reproduzir transformando. A mulher artista inclui um novo conteúdo em seu projeto de vir a ser.
O imaginário social pressuposto e historicamente construído do papel feminino é de um ser acessório, subalterno e cristalizado nas atividades da domesticidade e determinado para reproduzir a espécie. A mulher artista rompe com essa representação, pois possui a capacidade de açao inerente ao humano. Não serve unicamente à reprodução com seu suporte biológico, mas empreende uma ação transformadora. Ela não é exclusiva procriadora, e sim autora/atriz de sua vida, utilizando sua capacidade de invençao, imaginação, buscando a transcendência da arte. A socialização impõe os pressupostos, que são continuamente repostos e tendo também continuamente movimentos de ruptura. É capaz de vontade, empreendimento e ação. Ato volitivo e fazeçao. Inventora, buscando o ilimitado, burlando a finitude humana, cumprindo missão de sujeito e cidadã.
Na sociedade patriarcal, criar arte e cultura, alem de filhos, é provocativo e ameaça o status quo. Sair da cozinha e do cuidado dos filhos e competir com os homens, criando cultura, não é compatível com o pressuposto para a mulher. E ainda por cima na área das artes, não valorizada por não ser considerada de resultados produtivos, repleta de representações: “cantar não é trabalhar”, “pintar não é trabalhar”, “escrever não é trabalhar”. A vida cotidiana da mulher artista, enriquecida por suas atividades profissionais de criação, é libertaria e revolucionaria, remetendo a mulher a uma autonomia, emancipação e superaçao de suas vivencias anteriores de rejeições, proibições, lutas e resistencias.
*Psicóloga, escritora, ensaísta e orientadora de oficinas literárias.