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Escritura

janeiro 11th, 2011

Berenice Sica Lamas*

acadêmicas estudiosas
dizem a escrita feminina
é da ordem do impossível
(como o desejo?)
não é fácil, concordo
todavia não me sinto incapaz
às vezes desanimo desinspirada
até enclausuro encontro tempos
nunca impossibilitada

teimosamente
na orla do amarelo horizonte
há um sempre possível
dizendo

vem!

* Escritora e acadêmica da Academia Literária Feminina RS

Outonal

novembro 22nd, 2010

por Berenice Sica Lamas

fogachos, reposiçao
hormonal secura
ruguinhas marcas
de expressão veias
salientes
depressão osteoporose
sazonais sazonadas
maduras mulheres Deméteres
preparando fecundos invernos

Escritora e acadêmica da Academia Literária Feminina RS

Quem paga a música escolhe a dança?

novembro 5th, 2010

por Marisa Lajolo*

“Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso.

Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente.

Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida : felinos ferozes invadem o sítio e –de novo- é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças (particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça.

Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos.

Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares . O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes.

Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu (Dom Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar…!

É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação – manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que lêem.
Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos.

Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos . Trata-se de uma idéia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura.

Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade conta a nova mulher do papai, mas – ao contrário- pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva…

Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação—pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta . E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores . . .

No caso deste veto a “Caçadas de Pedrinho”, a Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas ; (…) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano , que se repete em vários trechos do livro analisado e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura.

Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.

O que a nota exigida deve explicar? o que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura ? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa? Qual seria o conteúdo da nota solicitada ? A nota deve fazer uma auto-crítica ( autoral, editorial ? ), assumindo que o livro contém estereótipos? a nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?

As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro. Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir- será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve salve. E salve-se quem puder… pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê!

* Prof.Titular (aposentada) da UNICAMP; Prof. da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pequisadora Senior do CNPq.; Ex Secretária de Educação de Atibaia (SP); Organizadora (com João Luís Ceccantini) do livro de Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil), obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2009 como melhor livro de Não Ficção.

Aposentadoria

outubro 17th, 2010

por Ana Mello

Essa semana um colega com 48 anos de trabalho resolveu parar de trabalhar, aposentado, optou por desligar-se do quadro de funcionário e curtir a vida a sua maneira. Ficamos todos fazendo contas e vendo quanto tempo mais trabalharíamos, discutindo o que faríamos depois de aposentados.

Em seguida vieram relatos de experiências de amigos de amigos quando se aposentaram. Muitas experiências tristes de pessoas que envelheceram rapidamente, que passavam o dia em casa de pijama só assistindo televisão. Algumas felizes, daqueles que resolveram
aproveitar para viajar ou fazer um curso que desejavam e não tinham tempo, para ler, ficar com os netos, fazer caminhadas diárias ou apenas curtir a vida fazendo o que estavam mesmo com vontade de fazer a cada momento.

Meu colega disse temer pelo seu casamento, pois a esposa poderá não agüentá-lo todos os dias em casa. É possível! Todas as coisas novas precisam de uma fase de adaptação, sem dúvida, mas depois tudo se acomoda, assim espero. Cada um sabe o que é melhor para si, contudo, quem sempre trabalhou a vida toda como dizem, deve se ocupar com alguma
coisas, ter uma rotina de atividades, nada muito estressante. Programar coisas para fazer como um cinema, café com os amigos, compras, visitas, atividade física. É o que pretendo fazer quando decidir me aposentar e escrever muito, ler muito, planos, muitos planos.

Seguidamente no shopping vejo um grupo de aposentados em um bom papo, dando risadas, fazendo lanchinho. No parque também é comum vê-los reunidos na maior farra. Todos homens, as mulheres não tem este hábito, pelo menos eu não tenho visto. Será que elas fazem outras coisas? Cuidam dos netos, quem sabe? Conheço umas que viajam, não param quietas em casa nunca.

Bate uma nostalgia em quem pára de trabalhar e nos que seguem trabalhando, afinal conviver com alguém durante muitos anos e interromper, é um pouco triste. Bom é saber que ele está vivo e com saúde e pode nos visitar sempre que quiser. É inevitável também ficar pensando em como mudamos neste tempo, namoros, casamentos, filhos, problemas compartilhados
e brigas, algumas brigas, passamos mais tempo no trabalho do que em casa e entramos na intimidade das pessoas próximas mesmo sem querer.

Sabemos das cirurgias uns dos outros, das doenças, dos aniversários, do colégio dos filhos, dos namoros, dos parentes. Já houve um tempo que eu achava chato saber de coisas que não me diziam respeito, depois amadureci também e fico feliz quando alguém quer me contar
algo pessoal, demonstrar sua alegria por alguma conquista ou algo assim.

Meu pai tinha uma dica ótima para aposentados e idosos, ele dizia que depois de certa idade temos absoluta obrigação de ficar bonitos e cheirosos e com um sorriso no rosto. Pois velho é que nem bebê, de fralda suja, ninguém quer dar colinho. Uma boa comparação para dizer que quem tem suas chatices e manhas, deve no mínimo tentar causar boa impressão. Certo ou errado eu não sei, mas ele sempre foi muito simpático e querido por todos e é isso que dá sabor a vida, percorrer caminhos, aprender, ser feliz.

Ciclos

outubro 14th, 2010

por Berenice Sica Lamas

sob olhos maternos
solstícios equinócios
pétalas pérolas pinceladas
menina de cinco anos

luz e sombra, pistilo
repletos de bolas balões
seus meninos
mãe aos trinta

ferro química fogo, estilo
raro encontro, correnteza
mulher de sessenta
inconsumada

Escritora e acadêmica da Academia Literária Feminina RS

Orquestra

julho 15th, 2010

por Berenice Sica Lamas

No domingo à tarde, em casa, Laura abre o álbum de fotografias. Ali estava toda a orquestra, os violinos, os violoncelos, o pianista, a cabeleira do maestro num fragmento de foto, as partituras, as roupas pretas e brancas. Excelentes fotos. A tristeza e o espanto de todos ali estavam. Desde seus onze anos preparara-se para brilhar com a orquestra na capital e agora, após vinte anos de duro estudo e aperfeiçoamento, desempregada. Uma violinista sem emprego não era qualquer mulher desempregada. Malditos deputados, sem sensibilidade suficiente em manter verbas para uma orquestra. Um suspiro fundo escapa e enxuga uma lágrima inútil, o peito pleno de mágoa. Tadzio entra e afaga seu rosto, mãe, o teu quebrou? Te compro outro violino. Laura vira as páginas do álbum, sem mais atençao.

Na última página, a foto do grupo para o folder do concerto na capital entra em combustão espontânea, chamuscando seus perplexos dedos. Arde a arte pela sobrevivência.

do livro Falsas Ficções, 2001.

Marcha – a – ré

julho 10th, 2010

Hilda Simões Lopes

A chuva se estilhaça, o limpador de parabrisa vai e vem, a mão de Pedro na alavanca engrena segunda, a navalha de borracha varre as gotas e o gosto acre queima a boca, a garganta, ameaça os miolos. Maria Aparecida endurece o corpo, aperta os dedos e se abraça, as unhas apunhalando as carnes. Caem confetes de água negra e imagens que o limpador leva, iguais a fala de Pedro, “Cida, não dá pra entender, com tudo pra seres feliz”, igual a conversa da tia Natália, “E essa cara, Cida? aceita a vida como ela é, marido bom a gente agrada”. A chuva é mais forte, desaba um rio pelos contornos, a visão é difícil, mas ela só vê, nítida, a própria dilaceração e os avessos e os gestos de Pedro, cheios de serras, lesmas, escorpiões. A mão de Pedro volta a mudar a marcha, a chuva ameaça romper o carro, as unhas de Maria Aparecida batem nos ossos, “Estás doente, não tens motivo pra não seres feliz”. Ela se lembra dos couros dos animais mortos, estaqueados, pregos nas extremidades, e se percebe tão esticada que já começa a se partir. E a voz, “Para mulher de homem rico que não tem amante, separação não tem cabimento”. O carro tropeça, a cabeça de Maria Aparecida sacode e ela pisca demorado, quando abre os olhos está envolvida pela perna da caranguejeira que sai da boca de Pedro, “ Cida, o que mais tu queres?” A caranguejeira se enrola mais, as trovoadas estouram o mundo e Maria Aparecida esfrega as mãos no rosto limpando-se da imundície, relaxando braços e pernas. E se entrega à chuva, morrerá limpa, igual à sua casa, filhos, armários, cozinha, tudo impecável, no lugar, cumprindo as funções com a perfeição das existências que não pensam. Estouram novas trovoadas, relâmpagos rasgam as trevas, ela se enxerga casando, embrulhada em nuvens brancas e pergunta se a alvura não será mais perigosa que o negrume. Volta a se ver noiva e as vozes, “A gente vê, são duas metades que se encontraram”. Metade, o que é uma metade? o outro lado, a base, o tempo de ser suporte, as garras descendo pelos avessos, igual beliscão fininho de menina malvada em tempo de colégio, ninguém via, o mais doloroso. Sente a aspereza do couro do acento na pele dos dedos, o barulho cadenciado da chuva, lembra o conto de Garcia Marquez, a mulher sangrando pelo dedo da aliança, hemorragia incontrolável, morte. A trovoada reconduz a voz, “Deves estar doente, com a vida que tens, separação, idéia de mulher desvairada”. O carro mergulha, a gosma acre enche-lhe a boca, o nariz, os ouvidos, ela entope. Imagens do casamento da filha, do filho saindo de casa, ela escondendo de Pedro ser por causa dele, cumprindo os desígnios, “Mulher tem que acomodar as arestas, deve servir de algodão entre marido e filhos”. Vê a casa sendo construída, feita de mata-borrão, prometendo absorver infelicidade. Fizeram a planta com cuidado, havia pontos com aspiradores gigantes: as lareiras, a piscina, a churrasqueira, onde todos os males seriam tragados. A voz de Pedro: “Estás proibida de voltar a este assunto cretino”. Estás, estás, sim, estás acostumada à tortura mental, dias e dias em silêncios guardados por tanques de guerra camuflados, era culpada, e não sabia de quê, mas estava proibida de ser infeliz, e os tanques trepidavam, e ela afundava na taquicardia, tremedeira, pressão caindo até o desmaio. Estoura o raio, abre os olhos, é mulher ruim, é culpada de tudo e não tinha feito nada, é infeliz e não podia ser. Uma voz a deixa cega, “A mulher é a responsável pela felicidade de uma família”. Caem pedras, a capota e o parabrisa ameaçam se partir, o temporal urra. Os negócios de Pedro, os dinheiros de Pedro, os desamigos de Pedro, a culpada é ela, os tanques de guerra encostam, casamento era avalizar a felicidade de um outro, era ser taipa de açude, o aguaceiro é tanto que o carro quase pára. A voz da mãe, “Como podes estar assim? casamento é isso mesmo”. Sacode o rosto, ergue os cabelos, respira fundo, pensa que o temporal é violento, então haverá dia de sol, entende avessos, há muito observa as gentes de veludo com avessos de punhais. Ergue-se a voz da amiga, ”Quando a gente tem marido como o teu e não agüenta mais, pede jóia, viagem, nova decoração para a casa”. O carro avança, já é madrugada e ainda chove pingos recheados. Outra amiga: “Cida, arruma um amante, homem casado e importante, o caso será secretíssimo, a gente fica mais bonita e se sente culpada, aí consegue levar o casamento adiante.” A perna da caranguejeira se ampliou e agora enrola-se em sua cintura, ouve gritos de que é culpada de tudo, pergunta o que fez de errado e os tanques rodopiam sobre seu corpo, algum lugar sangra, a navalha vai e vem no parabrisa, o carro estaciona e ela vê os pingos negros, é prisioneira da morte. Destrava a porta, quase se joga ao chão, Pedro já desceu e avança pelo avarandado. Ela permanece de pé, estática, inundando-se de chuva. “Cida, estás louca, sai da chuva”, ele fala gesticulando, chaves na mão. Ela olha as águas, a sangüeira a seus pés, ouve o fio da própria fala, “Pedro, eu não vou entrar”. Ele grita, “Estás louca, anda logo, olha os raios”. Arrebenta-se nova trovoada e faíscam raios, as pedras do caminho tremem. “Cida, não me ouves, Cida!” Maria Aparecida ensaia os primeiros passos, descobre-se firme, ergue a cabeça, esboça um sorriso. Enxerga festival de luzes em seu caminho, o rugido das trovoadas se transmuta na marcha triunfal de Aída, águas dançam à sua frente. Alguém grita, “Estás ensopada, corre, vem”. Ela abre a bolsa, pega a chave do próprio carro e se dirige a ele. Entra. Engrena a marcha-a-ré.

De livros e vinhos

julho 10th, 2010

Berenice Sica Lamas

Atravesso o pátio com cuidado. Circulo a ameixeira, abro a porta. Não quero derramar uma só gota do copo de leite de papai. Me atrai sua ampla peça isolada da casa em meio à parreira e ao arvoredo – misto de ateliê biblioteca oficina gabinete. Cavaletes, telas, tintas, pinceis, livros, revistas, torno com lixeira e serra circular, formão, goiva, cinzel, bigorna onde improvisa ferramentas, lamparina para aquecê-las e moldar a cera, martelo, madeiras, sarrafos, cheiro de serragem, plaina elétrica, esmeril, réguas e lápis de carpinteiro grafite plano. A coleção de serrotes de diversos tamanhos me fascina. Ele diz ser o local de suas transmutações… para mim, ambiente mágico de sua risada solta, lenços gitanos e réstias de sol que trespassam a vidraça, reluzindo os metais, o punhal, o espelho, o chapéu.

Papai saboreia o leite em pequenos goles, molhando o bigode. O caixote com os vinhos portugueses Ramos Pinto chegara e eu, constante contente, cumpro o ritual: abro-o, apanho o pequeno volume de capa vermelha, o raro brinde do “grande Camilo” como diz papai, “do castelo que precisa cor” completo eu – e coloco na estante ao lado dos demais. Chamo-a prateleira dos vinhos e papai sorri com ternura.

Na cadeira giratória de madeira e palhinha, volteio até tontear. Mamãe não serve o leite quando papai pinta as moças e então, não entrando na oficina, fico espiando através da janela. Ele se aproxima com a mão em concha, cheirando à água de toilette.

Um de cada cor, filhota?

Bem coloridinho, papai.

Ouvindo meus gritos, mamãe acorre em pânico, papai estrebucha com ataque.
Ardo em febre. Uma grande poça de lagrimas e xixi manchada de tinta escorre pela desordem do chão. Nadam preguinhos e parafusos, que chovem pelas minhas pernas.

(do livro Falsas Ficções, 2001)

Gloriosa infância

julho 10th, 2010

Ivanise Mantovani

Ivanise Mantovani

Gloriosos invernos da infância,
brincar com a neve bonita
de interiorana distância.
Grande portão de ferro.
De crochê eram as cortinas.
Assim vivi com meus avós
plantando e colhendo boninas.

Gloriosos verões da infância,
dormir sob o jardim coberto,
num pijama azul-piscina.
Acordar com a passarada,
galinhas, coelhos e patos.
Comer do pão feito em casa
coberto de marmelada.

Problema de homens

junho 30th, 2010

por José Saramago

Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que crêem ser seus donos. Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume, é certo que só pouco a pouco, que esta violência é um problema dos homens e que os homens têm de resolver. De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres quem saía à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo. A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio. É o problema das mulheres, diz-se, e isso não é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável cobardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica. Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade e com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e à violência. Direito a usar o que consideravam seu. Este novo acto de violência de género, mais os que se produziram neste fim-de-semana, em Madrid uma menina assassinada, em Toledo uma mulher de 33 anos morta diante da sua filha de seis, deveriam ter feito sair os homens à rua. Talvez 100 mil homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de género, com resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores e preocupações dos cidadãos. É um sonho, é um dever. Pode não ser uma utopia.
Publicado em O Caderno de Saramago | Comments Off – Julho 27, 2009