Ana Veloso*
“Eu sofro por ser mulher.”
Sakineh Mohammadie Ashtiani
Enquanto o jornalismo sensacionalista mundial explora o caso da iraniana que poderá ser apedrejada até morrer, centenas de movimentos feministas e nações do mundo inteiro estão fazendo mobilizações e pressionando entidades internacionais de direitos humanos em protesto contra mais um ato de barbárie contra a condição feminina no planeta. Todavia, o governo do Irã assumiu uma tendência de cancelar a execução por apedrejamento, mas pretende manter a sentença de morte com o enforcamento da ré.
Sakineh Mohammadie Ashtiani, mãe de duas crianças, foi obrigada a confessar que cometeu adultério, pelas autoridades do país. O caso está sendo usado como um exemplo do cumprimento das leis locais e para que outras cidadãs permaneçam mantidas em silêncio e sob a tirania do Estado.
Resguardadas as especificidades de cada cultura, é possível perceber semelhanças quando o assunto é a institucionalização da dominação/opressão feminina ao redor do mundo. Um planeta onde a amputação do clitóris, em algumas regiões, faz parte de um ritual de passagem para milhares de mulheres mutiladas. Passagem para quê? Para uma vida sem prazer, sem amor, sem sentido?
Discordo da tese da derrocada do patriarcado. Minha posição poderá contrariar argumentos de pesquisadores/as que debatem o assunto com vigor e competência. Contudo, não consigo perceber mudanças substanciais e efetivas quando percebo que tal sistema devastador continua vitimizando as mulheres ao redor do globo. Observamos sua perpetuação quase silenciosa em nações do oriente e, no ocidente, de modo talvez mais escandaloso com a explicitação dos crimes praticados nas esferas privada e pública contra a população feminina.
Quando o patriarcado “apresenta suas armas”, o apedrejamento assume formas distintas em cada país. Em Nairobi, a organização “Médicos sem Fronteiras” denuncia, em relatório recente, a existência de uma “violência sexual endêmica”, onde mulheres e crianças (meninas e meninos) são violados/as todos os dias por homens conhecidos, em geral, familiares. No Brasil, a expressão do modelo, marcado pela divisão sexual das tarefas e no controle sobre os corpos e a sexualidade das mulheres, é impressionante. Basta notar os altos índices de violência e o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.
O Mapa da Violência/2010, feito com base no banco de dados do Sistema Único de Saúde (DataSUS), revela: entre 1997 e 2007, 41.532 mulheres morreram vítimas de homicídio, o que significa dez cidadãs assassinadas por dia. Aqui mesmo, no eudecido, noticiamos: cerca de 40% das vítimas de tráfico de pessoas em Portugal são brasileiras. Este é o resultado do Relatório Anual de 2009 do Observatório do Tráfico de Seres Humanos, órgão ligado ao Ministério da Administração Interna (Interior) português.
Os/as leitores/as podem até pensar que as situações aqui apresentadas não têm relação direta.
Todavia, estamos tratando do mesmo fenômeno secular, que se estabeleceu, no mundo inteiro e que é responsável pela perpetuação das relações desiguais entre os gêneros masculino e feminino. Apesar de todas as transformações que o movimento feminista impulsionou ao lutar pela autonomia e contra qualquer tipo de interdição à liberdade das mulheres, precisamos permanecer em estado de alerta, em vigília.
O patriarcado ainda dita o ritmo das relações de opressão/dominação a que muitas cidadãs estão assujeitadas. Estamos muito distantes da vivência integral da emancipação das mulheres em vários países. As desigualdades entre homens e mulheres no mundo do trabalho, a permanente exploração das empregadas domésticas negras, a lesbofobia, a mercantilização dos corpos e da sexualidade feminina e a exploração sexual para fins comerciais de mulheres e meninas são fenômenos do século XXI!
Em meio às contradições e disputas de projetos e modelos de sociabilidade na tessitura da teia de nossa “aldeia global”, debates acerca dos princípios teóricos e das práticas políticas feministas são urgentes para a reinvenção do mundo. Não poderemos ousar falar na existência de uma democracia plena enquanto a liberdade das mulheres estiver ameaçada por Estados omissos e/ou pela força alienadora de fações religiosas.
Também não devemos nos contentar e comemorar a edição políticas compensatórias por nações que privilegiam o mercado em detrimento dos direitos humanos. Não há placebo para atenuar a dor das mulheres apedrejadas diariamente por governos que obedecem aos ditames dos fundamentalismos, do patriarcado e do capital.
*Jornalista, doutoranda em Comunicação, empreendedora social da Ashoka, professora da UNICAP e colaboradora do Centro das Mulheres do Cabo